sexta-feira, 26 de abril de 2013

biografia






valter hugo mãe nasceu em saurimo, angola, no ano de 1971. licenciado em direito, pós-graduado em literatura portuguesa moderna e contemporânea. vive em vila do conde.

publicou cinco romances: o filho de mil homens (2011), a máquina de fazer espanhóis (2010), o apocalipse dos trabalhadores (2008), o remorso de baltazar serapião, vencedor do prémio josé saramago (2006) e o nosso reino (2004).
a sua obra poética está revista e reunida no volume contabilidade (objectiva/alfaguara, 2010).
é autor dos livros para os mais novos: o rosto (agosto 2010), as mais belas coisas do mundo (agosto 2010), a verdadeira história dos pássaros (2009) e a história do homem calado (2009).
escreve a crónica autobiografia imaginária no jornal de letras.
valter hugo mãe é vocalista do grupo musical governo e esporadicamente dedica-se às artes plásticas.
letrista dos músicos/projectos mundo cão, paulo praça, indignu, salto, frei fado del’rei, blandino e eliana castro.
recebeu, em 2009, o troféu figura do futuro, atribuído pelo correio da manhã. recebeu, em 2010, a pena de camilo castelo branco. em 2010 recebeu a medalha de mérito singular de vila do conde.


terça-feira, 23 de abril de 2013

A máquina de fazer espanhóis: Política e narrativa


            Sob o ponto de vista político a narrativa gira em torno do sistema constituído pela ditadura salazarista cuja base de sustentação estava fundada na religião na família e no futebol. Em torno desses temas aparecem as reflexões sobre a história de Portugal, sua decadência em relação à Europa e à Espanha, e finalmente as dúvidas e esperanças de um recomeço com sua entrada na União Européia. É a respeito dessa esperança que o Silva da Europa ressalta no capítulo um: “e agora somos europeus. Qualquer iniquidade do nosso peculiar espírito será corrigida pela Europa, para sempre.” (mãe, 2011:12).
            A amargura e a revolta do António Silva, personagem-narrador, advém do choque que sofre alguém que, tendo dedicado toda sua vida à família se vê, repentinamente abandonado por seus  entes mais próximos. No capítulo três do livro, ele revela: “estar ali metido, [...] e era literalmente como se me quisessem matar e não tivessem coragem para optar por um método mais rápido. um método mais rápido que seria que uma maior honestidade, pensava eu.” (mãe, 2011:36).
           No capítulo cinco o autor introduz o Teófilo Cubillas, jogador de futebol peruano que atuou na equipe do Porto e que, nos últimos dias da ditadura conhecera a dona Leopoldina. Segundo o narrador, não importa a noite inesquecível que ambos tiveram, que nunca mais tenham se reencontrado.  Dona Leopoldina, agora residindo no asilo, ainda ostenta na parede do seu o retrato. “No lar da feliz idade toda a gente desconfiava saber por que razão a dona Leopoldina emoldurara aquele pôster e o tinha ali pendurado como relíquia de uma vida.” (mãe, 2011:63). O autor recorre aqui ao tema futebol para relacionar o esporte de massa e a rivalidade entre o Porto e o Benfica, duas paixões nacionais com os mecanismos de controle social utilizados pela ditadura. Ainda do futebol com a política: “ainda hoje ouço os velhos dizerem que o painho fez de tudo para que o benfica personificasse a glória da nação [...] era ver o entusiasmo  do ditador com o futebol dos encarnados. um futebol do Eusébio [...] a correr para o mérito dos portugueses. [E os efeitos da manipulação:] eu, que sempre fui portista, gostava do Eusébio como era impossível não gostar [...] claro que pelo coração, do lado do painho e isso propunha atenuar consideravelmente as minhas desconfianças” (mãe, 2011:81). Mas ainda havia desculpas: “mas em mil novecentos e cinqüenta as coisas não estavam ainda tão definidas [...], o certo e o errado eram difíceis de discernir. pois o benfica ainda não se fizera glorioso, nem salazar parecia ainda o estupor que o povo pudesse reconhecer cabalmente. [...] havíamos passado ao lado da guerra e parecia que a vida se protegia no país das quintas.” (mãe, 2011:82).
            No Capítulo sete vemos o entrelaçamento da educação tradicional com a religião: “ainda nos marcavam as heranças castradoras de uma educação com idas a missa, mas, sobretudo, uma dificuldade em cortar com o que os outros esperariam da nossa conduta [...]” (mãe, 2011:81); E mas uma vez a educação e a religião a serviço do regime: “ quando as crianças daquele tempo estudavam lá la lá lá ela ele eles elas alto altar lusitos lusitas viva salazar, toda gente achava que se estudava assim por bem, e rezava-se na escola para que deus e a nossa senhora e todo aquele séquito de santinhos e santinhas pairassem sobre a cabeça de uma cidadania temente e tão bem-comportadas. assim se aguentava a pobreza com uma paciência endurecida” (mãe, 2011:82.). E o silva e a laura, casados, seguem as regras: “eu e a laura assistíamos às  missas de domingo, muito esperançados de que começar uma vida a dois seria melhor assim, com as bênçãos sagradas e aqueles crentes todos em nosso redor, com cara de quem nos ajudariam por ofício de fé, com ar de quem gostava de nós e se preocuparia com as nossas misérias, e nós gostávamos deles.” (mãe, 2011:83).

O desencanto: nasce morto o filho do silva, e quase morre a laura
“e aprendi, no dia em que perdemos o nosso primeiro filho, que estávamos sozinhos no mundo. [...] fui pedir ao padre que nos fizesse chegar ao hospital, que fosse rápido [...] e o homem disse umas quantas vezes que tudo estaria na vontade de deus [...] e depois foi lá ele com duas velhas e não pensou em nenhum carro. o nosso filho já estava no colo da laura e ela sem sentidos, afastada da dor de permanecer com os olhos abertos sobre o silêncio mortal do bebé.” (mãe, 2011:83).

A imigração para a França
“durante muito tempo portugal foi um país cujas crianças nasceram em frança. tantas, caramba. e eu pensava, já ali por mil novecentos e sessenta e dois, que  em frança estaríamos a salvo, escapando da fome e do jugo de um trabalho sem retribuição suficiente para um raio de sol por dia.” (mãe, 2011:85). Há aqui uma menção à emigração de portugueses para França entre 1961 e 1974 é um dos episódios mais impressionantes da história contemporânea de Portugal, constituindo uma verdadeira debandada do país. Com efeito, "entre 1958 e 1974, cerca de um milhão de portugueses instalam-se em França, dispostos a trabalharem em tudo o que lhes apareça. As formas brutais da sua exploração começam em Portugal, com as redes que os transportam até à fronteira, e não raro os abandonam pelo caminho. Muitos portugueses morrem neste percurso. Em França são vítimas de todo o tipo de discriminações no trabalho, no alojamento e nas mais pequenas coisas do dia-a-dia, uma humilhação que a custo suportam. Muitos poucos esperam enriquecer, mas todos esperam  conseguirem uma vida mais digna que lhes é recusada na própria terra." (FONTES, 2011).

No capítulo doze o Silva conta como ousou escondendo o rapaz que fugia da  Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE):
“terça-feira, cinco de setembro de mil novecentos e sessenta e sete, uns minutos antes de fechar a barbearia [...] um homem assustado entrou por ali adentro e fitou-me. [...] não parecia saber o que fazer dizer. fitava-me ofegante, o olhar aterrado de quem fugia. [...] eu olhei para aquele homem que ali se pôs diante de mim, umedecido de medo, e indiquei-lhe o compartimento interior da barbearia, onde arrumava vassouras e panos velhos, baldes e outras tralhas.” (mãe, 2011:131).
“talvez tenha salvo a vida daquele rapaz. vi-o depois, muitas vezes, a fazer-se doutor, mais prudente na resistência à polícia criminosa. vinha por ali cortar o cabelo e, quando podia, enchia-me a cabeça de propaganda antifascista. eu proibia-o de  ali pôr os pés com algum panfleto ou folheto ou livro ou o que fosse que o incriminasse ou incriminasse a mim. era uma covardia típica da laura, para pensar nos filhos e no futuro.” (mãe, 2011:135-136)
E revela ter colaborado com o regime, pela família:
“no dia vinte e cinco de setembro de mil novecentos e setenta e um [...] os pides entraram na minha barbearia e levaram o rapaz que, nove anos antes, eu ajudara a escapar, [...] achei que fazia o que tinha de fazer. [...] e a vida continuava como se nada fosse porque ao fim de cada dia encontrava a minha laura à espera de aquecer a sopa conversando sobre os filhos crescendo e sobre como era bom sermos prudentes e legais.” (mãe, 2011:175).


            No Capítulo catorze chega ao lar da feliz idade o senhor Enrique, um espanhol senil, que teima em ser português para fugir do fantasma do Franco. A menção aqui é ao “massacre de Badajoz" efetuado pelas tropas franquistas durante a guerra civil espanhola. após a tomada da cidade foram perseguidos e mortos cerca de 10% da população da cidade, em represália à resistência oferecia. Algumas pessoas que conseguiam cruzar a fronteira eram devolvidas pela polícia de Salazar (Cf. http://www.areamilitar.net/HISTbcr.aspx?N=74).
“a mulher dizia-lhe, vais ficar bem. e tu sabes que te amamos muito e que viremos sempre visitar-te. e ele ficava vermelho de raiva, como se tivesse vulcões ali por dentro e gritava, deixem-me em paz, sou português, quero liberdade no meu país.” (mãe, 2011:153).
            No Capítulo quinze silva revela não ter tido amigos e  que a família sempre fora sua razão de viver:  “não creio que algum dia tenha sido suficientemente amigo de alguém. fui sempre um homem de família, para a família, e o meu raio de ação esgotava-se essencialmente na minha mulher, nos meus filhos, e nos meus pais, enquanto foram vivos. mas os que não tinham o meu sangue estariam sempre desclassificados no concurso tão rigoroso dos meus sentimentos.” (mãe, 2011:171).
“eu e a laura fizemos a vida através de um padrão discreto de rebeldia nenhuma, mas antes uma mágoa que não nos fazia agir contra nada nem ninguém, e só nos amargava as ideias para os intentos dos outros. Isso passava sobretudo pelo regime, claro, ao qual não desobedecíamos mas do qual não gostávamos particularmente.” (mãe, 2011:171).

Angústia e culpa
“o salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quiz mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua, até que nos tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão. [...] nós éramos gente exclusivamente por generosidade do ditador. portei-me como tal. um mendigo de reconhecimento e paz. fui, como tantos, um porco”. (mãe, 2011:175).
            No capítulo dezasseis o Silva assume que o que foi feito, foi feito: “com o vinte e cinco de abril, logo em mil novecentos e setenta e quatro, apenas três anos depois, seria de o rapaz me aparecer a contar-me o que houvesse. [...] mas se não aconteceu assim, eu sei, foi porque o mataram.” (mãe, 2011:184).

“fomos sempre um povo de caminhos salgados”. (mãe, 2011:205). Essa frase expressa todo o sentimento da obra, toda a história de um povo, uma metáfora que se desdobra no tempo. Em uma de suas crônicas Fernão Lopes já afirmava “São tempos difíceis estes os que vivemos nesta era de 1456. Nas taracenas da Ribeira das Naus, carpinteiros, calafates, petintais e remolares aparelham navios. Navios que tantas vezes servem de esquife aos que se aventuram oceano adentro.” (LOURES, 2011). Ou em Camões: Qual vai dizendo: "—Ó filho, a quem eu tinha/ Só para refrigério, e doce amparo/ Desta cansada já velhice minha,/ Que em choro acabará, penoso e amaro,/ Por que me deixas, mísera e mesquinha?/ Por que de mim te vás, ó filho caro,/ A fazer o funéreo enterramento,/ Onde sejas de peixes mantimento!” (Os Lusíadas, Canto IV:90). Ou Fernando Pessoa, em Mensagem: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/ Quantos filhos em vão rezaram!”
Fala-se de sal, de mar, de lágrimas, tristezas, saudades... e de dúvidas.
           No Capítulo vinte e um o senhor Silva reconhece que “precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia. este resto de vida [...] que eu julguei já ser um excesso, uma aberração, deu-me estes amigos.” (mãe, 2011:237)
           Enfim, ainda que com essa última e inesperada alegria o Silva sente angústia pelas incertezas que perpassam o texto. Após perder tantos filhos no mar, ha dúvidas sobre quantos outros perderão agora, nesta nova viagem, a da integração, a que se dá em outro rumo, oposto, mas também por mares nunca dantes navegados da Europa.
(Contribuição de Celso Felizola Santos - Graduando de Letras na  UFRRJ)

Referências Bibliográficas:
Área militar. Massacre de Badajoz. Disponível em <http://www.areamilitar.net/histbcr.aspx?n=74>, acesso em: 19/nov. 2011;
FONTES, Carlos. Memórias da emigração portuguesa em França. Disponível em: <http://imigrantes.no.sapo.pt/page6franca.html>, acesso em: 20 nov. 2011;
mãe, valter hugo. a máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011;
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Martin Claret, 2001;
LOURES, Carlos. Fernão Lopes: tempos difíceis (crônica). Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt/fernao_lopes.htm, acesso em: 19 nov 2011.

Valter Hugo Mãe e a Festa Literária Internacional de Paraty - FLIP


Entrevista com Valter Hugo Mãe de João Morales - 01/02/2010


| valter hugo mãe | (Valter Hugo Lemos de baptismo, nascido em Angola, em 1971) passou a infância em Paços de Ferreira e em 1980 mudou-se para Vila do Conde. Licenciou-se em Direito e fez uma pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Em 1992 integrou as Quasi Edições com Jorge Reis-Sá. Em 2001 dirigiu a revista Apeadeiro e em 2006 fundou a editora Objecto Cardíaco. Publicou diversos livros de poesia, entre eles “três minutos antes da maré encher” (Quasi, 2000), “a cobrição das filhas” (Quasi, 2001), “livro de maldições” (Objecto Cardíaco, 2006) ou “pornografia erudita” (Cosmorama, 2007). A sua poesia está reunida no volume “folclore íntimo” (Cosmorama, 2008). Em 2007 recebeu o Prémio Literário José Saramago pelo livro “o remorso de baltazar serapião” (publicado no ano anterior, pela QuidNovi). Durante a entrega do galardão Saramago designou o romance como “um tsunami literário”. Além desse publicou os romances “o nosso reino” (Temas e Debates, 2004) e “o apocalipse dos trabalhadores” (QuidNovi, 2008). 2a máquina de fazer espanhóis” é o seu primeiro romance na nova editora, Objectiva.

“a máquina de fazer espanhóis”, novo livro de valter hugo mãe, é uma reflexão sobre a velhice, sobre o que é isso de ser português, uma homenagem a Fernando Pessoa, uma catarse pessoal... e a confirmação de um dos mais mais interessantes escritores portugueses da actualidade.


Nos teus livros e ao assinares o teu nome não utilizas maiúsculas. Já li diversas razões... afinal, porquê essa opção?
[...] O meu nome é Valter e assim se lê e entende quer se escreva com maiúscula ou com minúscula inicial. O que se passa é que convencionamos conferir a determinadas palavras - desde logo aos nomes próprios - uma dignidade superior às outras e isso, para mim, não me interessa. Interessa-me que seja a força da frase, a capacidade expressiva do texto a seduzir o leitor para as palavras mais importantes, como se as palavras, sozinhas, se constituíssem como heroínas de um jogo exclusivamente delas, vencendo umas sobre as outras pela sua natureza significativa - inclusive no encontro das convicções de cada leitor - ou simplesmente harmonizando-se e defendendo-se em conjunto, como apaixonadas umas pelas outras.


No teu novo livro, “a máquina de fazer espanhóis”, o senhor silva perde a mulher, aos 84 anos. Ninguém está nunca preparado para aceitar a morte, mesmo sabendo-a inevitável, certo?
A morte é das exigências mais impossíveis que se fazem ao nosso espírito. Não creio que saibamos aceitar o desligar de todas as coisas, sobretudo se não estivermos à espera de que se trate de uma passagem para outro lado. Pessoalmente, não sinto um terror profundo pela minha morte, sinto um terror profundo pela morte dos que amo. Mas acho que digo isto porque abuso mas vou tendo tempo, quando vir a bocarra aberta para me tragar vou gritar de medo como uma criança. Ainda por cima sou dramático e um pedaço medricas.


Neste romance também se aborda o final da Ditadura. Que consequências encontras no facto de ser esta, a que está ainda viva e em grande parte no activo, a última geração a ter sentido na pele esses dois tempos?
[...] Acho importante aprendermos tudo quanto possamos aprender com a nossa história recente, para que não se repitam erros, para que nunca mais se suporte a censura, nenhuma censura, nem mesmo contra a estupidez ou ideias tolas. Cresci a pensar que queria ser escritor e a ouvir alguém dizer-me que por sorte poderia escrever em liberdade. Tive sempre medo que me tirassem a liberdade antes do tempo de poder lutar por ela. Agora quero acreditar num mundo que não recua. Que aprende e melhora. Tenho dúvidas, mas quero muito acreditar. Quem viu a vida de antigamente tem a obrigação de mostrar como é importante pôr os políticos em sentido e o povo esperançado para que nunca se desista de fazer mais e melhor por todos, para todos.


O livro aborda também um certo sentido de ser português. Achas que temos o hábito de chutar as responsabilidades para debaixo do tapete?
Temos o hábito de não saber muito bem quem é o responsável. Nem precisamos de chutar nada. Por definição, é uma baralhada nos poderes que já nem sabemos a quem pedir explicações, pelo que nos desabituamos a pedir explicações e a coisa rola. Não é notório que, ao menos uma vez na vida, suspiramos pela ideia de sermos espanhóis, vivermos numa realidade com um salário mínimo que é o dobro do nosso e fazermos parte de um colectivo que prima pelo orgulho e alguma grandiosidade em relação ao futuro? Não precisa de ser um sentimento a sério, basta apenas que seja um fantasma, mas é certo que nos medimos com os espanhóis e, infelizmente, nos vemos quase sempre a perder. Isto não nos retira a identidade, e talvez esteja a mudar a pés largos, mas acontece porque somos inelutavelmente vizinhos e entre vizinhos há aquela história da galinha, sobretudo quando a dele é mesmo mais gorda do que a nossa.


E o universo de que te socorres? Que “pontes” podemos encontrar entre a música, os textos, as imagens que crias?
As pontes são fáceis de perceber. Sou um rapaz feito de coisas muito claras e coisas muito escuras, não tenho paciência para intermédios. Resulto sempre num lirismo muito grande, poderia dizer também uma grande delicadeza, que se acompanha de um medo profundo, um desencanto, um negrume que cobre cada coisa a dado passo. Por isso, acho que tudo o que faço tem esse tom poético, meio delicado, que depois é trespassado por uma tristeza e uma desfiguração que fere muito. Os meus livros são assim, os meus desenhos são monstrinhos delicados, a minha voz tem alguma doçura mas é profundamente melancólica. Não sei ser de outra maneira.


Este livro está cheio de referências ao Pessoa, em especial à Tabacaria (”despacho a vida como se tivesse vontade de a despachar à pressa” ou o delicioso “come chocolates, marmanjona, come chocolates”. Como é que achas que Fernando Pessoa, ele que morreu novo, encarava a vida?
Era tão atrapalhado quanto eu, ou ainda mais, que eu ao menos cheguei a ir para a cama com a Ofélia, por assim dizer. Adoro o Pessoa, tinha, mais tarde ou mais cedo, de lhe fazer uma homenagem. Ele não precisa para nada, mas preciso eu, é como pagar a alguém o que lhe devemos.

Entrevista de João Morales. os meus livros. 01 de fevereiro de 2010. Para ler a entrevista completa é preciso adquirir a revista em Os Meus Livros.









Entrevista com Valter Hugo Mãe - Entrelinhas 17/17/2011







quarta-feira, 17 de abril de 2013

a máquina de fazer espanhóis, valter hugo mãe

Valter Hugo Mãe

            Esta surpreendente obra, reconhecida em Portugal como o grande acontecimento literário português em 2010, é de autoria do escritor Valter Hugo Mãe, residente em Portugal desde sua infância.
            Um ponto de destaque é a escrita em minúscula (as maiúsculas aparecem apenas em dois capítulos); outra distinção é a ausência de pontuação, exceto a vírgula e o ponto.

Contextualizando

            “Com um estilo de prosa que José Saramago definiu como um “tsunami linguístico, semântico e sintático”, valter hugo mãe é o mais prestigiado autor de sua geração em Portugal. Em a máquina de fazer espanhóis, seu romance mais recente, valter hugo narra a história de antónio jorge da silva, um barbeiro de 84 anos que depois de perder a mulher, passa a viver num asilo. Sozinho, mas sem sucumbir ao pessimismo, silva se vê obrigado a investigar novas formas de conduzir sua vida. Ele, que viveu sob o peso da ditadura salazarista, faz também uma dura revisão de seu passado e de toda uma geração – não sem notar que o pessimismo sobre o papel de Portugal no mundo exacerbou-se. Considerado o acontecimento literário de 2010 em Portugal, a máquina de fazer espanhóis foi o segundo livro de ficção mais vendido naquele ano no país.” (retirado do site da editora Cosac Naify: http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/11598/a-m%C3%A1quina-de-fazer-espanh%C3%B3is.aspx)

A narrativa

            A narrativa é construída por meio do personagem-narrador, em primeira pessoa, António Jorge da Silva, sendo dividida em vinte e dois capítulos e se passa em volta deste personagem-narrador, já idoso e prestes a se tornar viúvo. Há uma mistura de episódios de sua vida antes e depois do lar. Um aspecto curioso é o fato de o personagem ser um velho octogenário, o que simboliza a voz que a sociedade não quer mais ouvir. A obra, resgata vozes como esta.

Personagens Principais


  • O senhor Cristiano Mendes da Silva, o Silva da Europa, que reencontra posteriormente no asilo;
  • Ellisa, filha do personagem-narrador, que o interna no asilo;
  • O Dr. Bernardo, que dirige o lar;
  • O senhor Américo, funcionário do lar, que “não é habilitado por escola nenhuma, senão pelo coração”;
  • O senhor Pereira, que antes de morrer descobre que é vítima de um câncer de próstata;
  • A dona Marta, cujo marido, mais jovem a abandonou no asilo e nunca mais deu notícias;
  • O Esteves sem metafísica, o do poema “tabacaria”;
  • Dona Leopoldina, que mantém em seu quarto o retrato de Teófilo Cubillas, jogador peruano que havia atuado em Portugal e com quem a solteirona havia vivido uma noite inesquecível de amor;
  • O Anísio Franco, o “anísio franco dos olhos de luz”, referência a um personagem real de Portugal;
  • O Enrique, o “português de badajoz”;
  • A dona Glória, que inicia um namoro não muito aceito pelo grupo com o Anísio.

Espaço e Tempo

            O espaço é centrado basicamente no asilo “lar da feliz idade”, nome que sugere um jogo de palavras e significados que o autor utiliza para tecer o romance.
           O tempo da narrativa é posterior à entrada de Portugal para a comunidade européia e o tempo narrado se alterna entre memórias do passado do senhor silva e o presente que vive no asilo.

Narrativa e Política

            A 
narrativa gira em torno da ditadura salazarista e sua relação com a educação, a religião, a família e o futebol. Através dessas instâncias o regime conseguia, manter um povo constituído de “bons homens” (mãe, 2011, p.33), dentro da ordem, ainda que vivendo na miséria.
            O autor analisa a fundo questões que passam pelo imaginário português, como sua posição em relação à Europa, as dificuldades de sobrevivência, o povo se dispersando, emigrando, sofrendo, morrendo, desde as navegações até a revolução de abril de 1974;  Analisa, ainda, o quadro que se configura com a integração de Portugal à comunidade européia; O medo, as angustias e incertezas,  como já escrevia dizer de Fernão Lopes (LOURES, 2011), quando  lançavam-se ao “mar salgado” (PESSOA, 2001). dúvidas, incertezas e angustia, como as que sente, no final, o próprio narrador.

“Tabacaria” e a narrativa

         “surpreendeu-me o senhor pereira que, como que se lembrando repentinamente, me perguntou, sabe quem é este esteves. torci os lábios com algum desinteresse e confirmação de ignorância. e ele disse, é o esteves sem metafísica, sim, o do fernando pessoa, é uma coisa do caraças. está a ver. e eu abri a boca de espanto inteiro. o que diz você, perguntei. ó homem, é verdade, é o esteves sem metafísica da tabacaria do fernando pessoa.” (mãe, 2011, p.50)
          “no dia quinze de janeiro de mil novecentos e vinte e oito joão esteves era um moço de vinte anos cuja vida corria difícil. [...] joão esteves entrou mais uma vez na tabacaria alves e comprou o jornal a ordens do tio, entrou na tabacaria de sorriso educado, cumprimentou o senhor fernando pessoa que ali estava de breve conversa com o dono do estabelecimento e depois cumprimentou o próprio dono do estabelecimento e pediu o jornal de sempre,  [...] e joão esteves saiu da tabacaria sem mais nada, inconsciente de que plantara no terreno fértil da criatividade de fernando pessoa um poema eterno.” (mãe, 2011, pp.69,70)
           “[...] houvessemos lembrado de que também no lar da feliz idade havia mitologia viva e pronta a abrir bocarras de espanto. o esteves. o elegante e eterno esteves sem metafísica que vivia ainda, falando e contando as suas aventuras como se os livros aumentassem. como se a tabacaria e o álvaro de campos e o fernando pessoa tivessem uma continuação.” (mãe, 2011, p.95)
            “era exatamente como ler a tabacaria parte dois, ou frequentar a tabacaria e estarmos oitenta anos antes a confraternizar com os génios numa das histórias mais históricas da nação.” (mãe, 2011, p.96)
            “e entretanto o mito esteves fazia cem anos.” (mãe, 2011, p.123)
            “o incrível aniversário do joão da silva esteves sem metafísica [...], era mesmo preciso que se lhe desse um abraço, àquele amigo do fernando pessoa, a um verso vivo da mais valiosa poesia portuguesa.” (mãe, 2011, p.125)
            “pasmávamos ainda como se não fosse coisa de acreditar que o joão esteves um dia tivesse vivido em lisboa e frequentado a tabacaria alves com naturalidade suficiente para ser genuíno dentro de um poema de fernando pessoa.” (mãe, 2011, p.127)
           “e o esteves sem metafísica, atiçado de hilário pelo senhor pereira, virou-se para a dona leopoldina e disse-lhe, come chocolates, manjarrona, come chocolates.” (mãe, 2011, p.75 - grifos nossos)
            “ficaria deitado dia e noite, a ver pela janela que o céu clareava e escurecia sobre a terra abrindo já as mandíbulas que me haveriam de tragar.” (mãe, 2011, p.24 - grifos nossos)
           Metafísica: “sabes que os peixes têm uma memória de segundos. [...] é por isso que não ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo. compreendes. a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação.”  (mãe, 2011, p.240)
           “naquela altura eu tinha de gritar. precisava de dizer que me arrependia, que não queria acabar sem metafísica, que me enterrassem com a metafísica e português.” (mãe, 2011, p.248)

Morte e a narrativa


            “com a morte, também o amor devia acabar. ato continuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. [...] com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se tornasse tão desumano [...] foi como se me dissesem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.” (mãe, 2011, p.21)‏
            “o século xx traz a morte que se esconde, a morte vergonhosa [...] não  há mais sinal de que uma morte ocorreu [...] a morte “boa” é aquela em que  não se sabe se o sujeito morreu ou não. o local da morte é transferido do lar para o hospital [...] no século xx a maioria das pessoas não vê os parentes morrerem. o hospital é conveniente pois   esconde a repugnância e os aspectos sórdidos ligados a doença.” (KOVÁCS, 2002, p.38,39)‏
            “entre aquelas pessoas poucas me haviam já dirigido a palavra. não sabia nada sobre elas, não imaginava quais fossem os seus nomes [...] claro está que quando alguma morria, eu não tinha percepção de que subitamente alguém ali faltava, alguém que pudesse estar já a ser substituído por outra pessoa.” (mãe, 2011, p.210)‏
            “os quartos da ala esquerda deitam sobre o cemitério. o médico olhava para o chão e fazia ar de quem não via nisso mal algum.”(mãe, 2011, p.24)‏
            A morte como negócio: “é um crime. põem estes fumos nos quartos dos velhos. põem sim, que quando eu cheguei aqui já alguém me contara que o faziam. devem ter quem dê mais para entrar. tem de despachar estes velhos. tome tento no que lhe digo, eles têm de despachar estes velhos para meterem aqui outros com maior pagamento.”  (mãe, 2011, p.55)‏
           Os pássaros negros: “durante os meus pesadelos imaginava-me num dos quartos da ala esquerda a babar sobre os lençóis e a ver dezenas de abutres voarem no céu diante da janela [...] subitamente debicavam me o corpo e eu ia permanecendo vivo e, até não ter corpo nenhum, a consciência não me abandonava. eu agoniava por achar que a morte não dependia do corpo, condenando-me a padecer daquela esera para todo o sempre. o estupor do corpo já desfeito e a morte sem o perceber, sem fazer o que lhe competia por uma crueldade perversa que eu nunca previra.” (mãe, 2011, p.37)‏

 Referências Bibliográficas:


Área militar. Massacre de Badajoz. Disponível em <http://www.areamilitar.net/histbcr.aspx?n=74>, acesso em: 19/nov. 2011;
FONTES, Carlos. Memórias da emigração portuguesa em frança. Disponível em: <http://imigrantes.no.sapo.pt/page6franca.html>, acesso em: 20 nov. 2011;
KOVÁCS, Maria Júlia. Atitudes diante da morte: visão histórica, social e cultural. In: Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002;
mãe, valter hugo. a máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011;
PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV. Porto Alegre, RS: L&PM POCKET, 2011.
 _________. Mensagem. São Paulo: Martin Claret, 2001;
LOURES, Carlos. Fernão Lopes: tempos difíceis (crônica). Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt/fernao_lopes.htm, acesso em: 19 nov 2011.

terça-feira, 19 de março de 2013

TABACARIA



    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.

    (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

    Vivi, estudei, amei e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

    Fiz de mim o que não soube
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


    Álvaro de Campos, 15-1-1928

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

a máquina de fazer espanhóis.



Somos bons homens. assim começa a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe, considerado um dos atuais grandes nomes da literatura portuguesa. vencedor do prêmio literário José Saramago, arrancou enormes elogios do grande escritor português que considerou seu livo o remorso de baltazar serapião um "tsunami literário" e a experiencia de lê-lo a "Assistir um novo parto da língua portuguesa".


Pela visão de Antônio Jorge da Silva, um homem idoso que é posto em um asilo após a morte da esposa, somos levados a partilhar suas reflexões e memória. Vemos sua dificuldade em lidar com a perda e a negação em sentir-se bem com sua situação. Mais do que estar velho e preso em um lugar de esquecimento lento e silencioso, o asilo "lar da feliz idade", o Silva já não tem fôlego para seguir em frente. Sem laura a vida perdeu o valor. De forma bem reflexiva, e sem exageros, somos imersos na dor deste homem e na injustiça de continuar vivo quando já não sobrou nada que o prenda aqui:


com a morte, também o amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutria pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.” (mãe, 2011:21)


Mesmo apesar da perda e da revolta o silva vai aos poucos se relacionando com a pessoas que passam a fazer parte do seu cotidiano. Passa a fazer amizade com os outros internos e juntos vão passando os dias a debater e lembrar dos tempos idos e os reflexos nos dias atuais. Como crianças se poem a brincar e fazerem travessuras, encontrando um pouco de diversão mesmo em meio ao silencio e a iminência da morte. E mesmo assim sem perderem o foco de sua situação. A melancolia e a tristeza dividem espaço em medida igual com a alegria e a amizade.


O Silva viu muita coisa. Viu um país em frangalhos e a violência dos ditos homens bons. Sua alma, se é que existe alma, é testemunha e vítima das lembranças que partilha com o leitor. A idade avança e cobra os frutos de um passado que vive a remexer-se e desentocar as coisas que se fingem esquecidas. O governo ditatorial do Estado Novo Salazarista e a profunda marca deixada na memória daqueles homens e mulheres que ali estão. É como se a vida do Silva fosse a vida de Portugal, um país à deriva no salgado mar da História e que pouco a pouco vai se abrindo ao leitor. Um país de silvas que viveram e sobreviveram aos horrores políticos que tanto marcaram e desfiguraram uma nação. Em seu titulo, a máquina de fazer espanhóis, já carrega em si toda essa bagagem histórica, de denuncia e arrependimento, pois Portugal já esteve sob governo espanhol nos tempos de Felipe II e no livro surge a dúvida de como estaria o país se ainda fosse governado pela Espanha. Portugal é hoje economicamente bem inferior aos outros países europeus, contrastando com a situação de seu vizinho, a Espanha: "é verdade, quem de nós, ao menos uma vez na vida, não lamentou já o fato de sermos independentes. quem, mais do que isso até, não desejou que a espanha nos reconquistasse, desta vez para sempre e para salários melhores"(mãe, 2011:184-185). Portugal é então uma máquina de fazer espanhóis, as mulheres portuguesas "abrem as pernas" e dão luz a homens e mulheres "arrependidos , com vontade de voltar a casa, para terem melhor casa, melhores salários, uma dignidade..." ao invés de terem uma história de remorsos, tristezas e saudades.


Angústia. É a palavra que define e termina este tão deliciosamente casmurro livro. Onde mesmo na solidão não se está sozinho e mesmo no esquecimento existem as lembranças boas e ruins. Onde a literatura portuguesa ganha vida pela própria literatura portuguesa e o Esteves sem metafísica, aquele do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, é um interno do asilo e anda pelos mesmos corredores que o Silva. Um pedaço da literatura se mostra vivo e tão humano quanto todos ali, seja se agarrando a santas ocas, vendo pássaros negros e máquinas estranhas de retirar a metafisica de um homem. E sentindo angústia, muita angústia.