Sob o ponto de vista político a
narrativa gira em torno do sistema constituído pela ditadura salazarista cuja
base de sustentação estava fundada na religião na família e no futebol. Em
torno desses temas aparecem as reflexões sobre a história de Portugal, sua
decadência em relação à Europa e à Espanha, e finalmente as dúvidas e
esperanças de um recomeço com sua entrada na União Européia. É a respeito dessa
esperança que o Silva da Europa ressalta no capítulo um: “e agora somos
europeus. Qualquer iniquidade do nosso peculiar espírito será corrigida pela
Europa, para sempre.” (mãe, 2011:12).
A amargura e a revolta do António Silva,
personagem-narrador, advém do choque que sofre alguém que, tendo dedicado toda
sua vida à família se vê, repentinamente abandonado por seus entes mais próximos. No capítulo três do
livro, ele revela: “estar ali metido, [...] e era literalmente como se me
quisessem matar e não tivessem coragem para optar por um método mais rápido. um
método mais rápido que seria que uma maior honestidade, pensava eu.” (mãe,
2011:36).
No capítulo cinco o autor introduz o
Teófilo Cubillas, jogador de futebol peruano que atuou na equipe do Porto e
que, nos últimos dias da ditadura conhecera a dona Leopoldina. Segundo o narrador,
não importa a noite inesquecível que ambos tiveram, que nunca mais tenham se
reencontrado. Dona Leopoldina, agora
residindo no asilo, ainda ostenta na parede do seu o retrato. “No lar da feliz
idade toda a gente desconfiava saber por que razão a dona Leopoldina emoldurara
aquele pôster e o tinha ali pendurado como relíquia de uma vida.” (mãe, 2011:63).
O autor recorre aqui ao tema futebol para relacionar o esporte de massa e a
rivalidade entre o Porto e o Benfica, duas paixões nacionais com os mecanismos
de controle social utilizados pela ditadura. Ainda do futebol com a política:
“ainda hoje ouço os velhos dizerem que o painho fez de tudo para que o benfica
personificasse a glória da nação [...] era ver o entusiasmo do ditador com o futebol dos encarnados. um
futebol do Eusébio [...] a correr para o mérito dos portugueses. [E os efeitos
da manipulação:] eu, que sempre fui portista, gostava do Eusébio como era
impossível não gostar [...] claro que pelo coração, do lado do painho e isso propunha
atenuar consideravelmente as minhas desconfianças” (mãe, 2011:81). Mas ainda
havia desculpas: “mas em mil novecentos e cinqüenta as coisas não estavam ainda
tão definidas [...], o certo e o errado eram difíceis de discernir. pois o
benfica ainda não se fizera glorioso, nem salazar parecia ainda o estupor que o
povo pudesse reconhecer cabalmente. [...] havíamos passado ao lado da guerra e
parecia que a vida se protegia no país das quintas.” (mãe, 2011:82).
No Capítulo sete vemos o
entrelaçamento da educação tradicional com a religião: “ainda nos marcavam as
heranças castradoras de uma educação com idas a missa, mas, sobretudo, uma
dificuldade em cortar com o que os outros esperariam da nossa conduta [...]” (mãe,
2011:81); E mas uma vez a educação e a religião a serviço do regime: “ quando
as crianças daquele tempo estudavam lá la lá lá ela ele eles elas alto altar
lusitos lusitas viva salazar, toda gente achava que se estudava assim por bem,
e rezava-se na escola para que deus e a nossa senhora e todo aquele séquito de
santinhos e santinhas pairassem sobre a cabeça de uma cidadania temente e tão
bem-comportadas. assim se aguentava a pobreza com uma paciência endurecida” (mãe,
2011:82.). E o silva e a laura, casados, seguem as regras: “eu e a laura
assistíamos às missas de domingo, muito
esperançados de que começar uma vida a dois seria melhor assim, com as bênçãos
sagradas e aqueles crentes todos em nosso redor, com cara de quem nos ajudariam
por ofício de fé, com ar de quem gostava de nós e se preocuparia com as nossas
misérias, e nós gostávamos deles.” (mãe, 2011:83).
O
desencanto: nasce morto o filho do silva, e quase morre a laura
“e
aprendi, no dia em que perdemos o nosso primeiro filho, que estávamos sozinhos
no mundo. [...] fui pedir ao padre que nos fizesse chegar ao hospital, que
fosse rápido [...] e o homem disse umas quantas vezes que tudo estaria na
vontade de deus [...] e depois foi lá ele com duas velhas e não pensou em
nenhum carro. o nosso filho já estava no colo da laura e ela sem sentidos,
afastada da dor de permanecer com os olhos abertos sobre o silêncio mortal do
bebé.” (mãe, 2011:83).
A
imigração para a França
“durante muito
tempo portugal foi um país cujas crianças nasceram em frança. tantas, caramba.
e eu pensava, já ali por mil novecentos e sessenta e dois, que em frança estaríamos a salvo, escapando da
fome e do jugo de um trabalho sem retribuição suficiente para um raio de sol
por dia.” (mãe, 2011:85). Há aqui uma menção à emigração de portugueses para
França entre 1961 e 1974 é um dos episódios mais impressionantes da história
contemporânea de Portugal, constituindo uma verdadeira debandada do país. Com
efeito, "entre 1958 e 1974, cerca de um milhão de portugueses instalam-se
em França, dispostos a trabalharem em tudo o que lhes apareça. As formas
brutais da sua exploração começam em Portugal, com as redes que os transportam
até à fronteira, e não raro os abandonam pelo caminho. Muitos portugueses
morrem neste percurso. Em França são vítimas de todo o tipo de discriminações
no trabalho, no alojamento e nas mais pequenas coisas do dia-a-dia, uma
humilhação que a custo suportam. Muitos poucos esperam enriquecer, mas todos
esperam conseguirem uma vida mais digna
que lhes é recusada na própria terra." (FONTES, 2011).
No
capítulo doze o Silva conta como ousou escondendo o rapaz que fugia da Polícia Internacional e de Defesa do Estado
(PIDE):
“terça-feira,
cinco de setembro de mil novecentos e sessenta e sete, uns minutos antes de
fechar a barbearia [...] um homem assustado entrou por ali adentro e fitou-me.
[...] não parecia saber o que fazer dizer. fitava-me ofegante, o olhar aterrado
de quem fugia. [...] eu olhei para aquele homem que ali se pôs diante de mim,
umedecido de medo, e indiquei-lhe o compartimento interior da barbearia, onde
arrumava vassouras e panos velhos, baldes e outras tralhas.” (mãe, 2011:131).
“talvez
tenha salvo a vida daquele rapaz. vi-o depois, muitas vezes, a fazer-se doutor,
mais prudente na resistência à polícia criminosa. vinha por ali cortar o cabelo
e, quando podia, enchia-me a cabeça de propaganda antifascista. eu proibia-o
de ali pôr os pés com algum panfleto ou
folheto ou livro ou o que fosse que o incriminasse ou incriminasse a mim. era uma
covardia típica da laura, para pensar nos filhos e no futuro.” (mãe, 2011:135-136)
E revela ter colaborado com o regime, pela família:
“no dia vinte e cinco de setembro de mil novecentos e setenta e um [...] os pides entraram na minha barbearia e levaram o rapaz que, nove anos antes, eu ajudara a escapar, [...] achei que fazia o que tinha de fazer. [...] e a vida continuava como se nada fosse porque ao fim de cada dia encontrava a minha laura à espera de aquecer a sopa conversando sobre os filhos crescendo e sobre como era bom sermos prudentes e legais.” (mãe, 2011:175).
No Capítulo catorze chega ao lar da
feliz idade o senhor Enrique, um espanhol senil, que teima em ser português
para fugir do fantasma do Franco. A menção aqui é ao “massacre de Badajoz"
efetuado pelas tropas franquistas durante a guerra civil espanhola. após a tomada
da cidade foram perseguidos e mortos cerca de 10% da população da cidade, em
represália à resistência oferecia. Algumas pessoas que conseguiam cruzar a
fronteira eram devolvidas pela polícia de Salazar (Cf. http://www.areamilitar.net/HISTbcr.aspx?N=74).
“a
mulher dizia-lhe, vais ficar bem. e tu sabes que te amamos muito e que viremos
sempre visitar-te. e ele ficava vermelho de raiva, como se tivesse vulcões ali
por dentro e gritava, deixem-me em paz, sou português, quero liberdade no meu
país.” (mãe, 2011:153).
No Capítulo quinze silva revela não
ter tido amigos e que a família sempre
fora sua razão de viver: “não creio que
algum dia tenha sido suficientemente amigo de alguém. fui sempre um homem de
família, para a família, e o meu raio de ação esgotava-se essencialmente na
minha mulher, nos meus filhos, e nos meus pais, enquanto foram vivos. mas os
que não tinham o meu sangue estariam sempre desclassificados no concurso tão
rigoroso dos meus sentimentos.” (mãe, 2011:171).
“eu
e a laura fizemos a vida através de um padrão discreto de rebeldia nenhuma, mas
antes uma mágoa que não nos fazia agir contra nada nem ninguém, e só nos
amargava as ideias para os intentos dos outros. Isso passava sobretudo pelo
regime, claro, ao qual não desobedecíamos mas do qual não gostávamos
particularmente.” (mãe, 2011:171).
Angústia
e culpa
“o
salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por
nos ajudar, mas que depois não quiz mais ir-se embora e que nos fez sentir
visita sua, até que nos tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou
amaciados pela exaustão. [...] nós éramos gente exclusivamente por generosidade
do ditador. portei-me como tal. um mendigo de reconhecimento e paz. fui, como
tantos, um porco”. (mãe, 2011:175).
No capítulo dezasseis o Silva assume
que o que foi feito, foi feito: “com o vinte e cinco de abril, logo em mil
novecentos e setenta e quatro, apenas três anos depois, seria de o rapaz me
aparecer a contar-me o que houvesse. [...] mas se não aconteceu assim, eu sei,
foi porque o mataram.” (mãe, 2011:184).
“fomos
sempre um povo de caminhos salgados”. (mãe, 2011:205). Essa frase expressa todo
o sentimento da obra, toda a história de um povo, uma metáfora que se desdobra
no tempo. Em uma de suas crônicas Fernão Lopes já afirmava “São tempos difíceis
estes os que vivemos nesta era de 1456. Nas taracenas da Ribeira das Naus,
carpinteiros, calafates, petintais e remolares aparelham navios. Navios que
tantas vezes servem de esquife aos que se aventuram oceano adentro.” (LOURES,
2011). Ou
em Camões: Qual vai dizendo: "—Ó filho, a quem eu tinha/ Só para refrigério,
e doce amparo/ Desta cansada já velhice minha,/ Que em choro acabará, penoso e
amaro,/ Por que me deixas, mísera e mesquinha?/ Por que de mim te vás, ó filho
caro,/ A fazer o funéreo enterramento,/ Onde sejas de peixes mantimento!” (Os
Lusíadas, Canto IV:90). Ou
Fernando Pessoa, em Mensagem: “Ó mar
salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos,
quantas mães choraram,/ Quantos filhos em vão rezaram!”
Fala-se
de sal, de mar, de lágrimas, tristezas, saudades... e de dúvidas.
No Capítulo vinte e um o senhor Silva
reconhece que “precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto
de companhia. este resto de vida [...] que eu julguei já ser um excesso, uma aberração,
deu-me estes amigos.” (mãe, 2011:237)
Enfim, ainda que com essa última e
inesperada alegria o Silva sente angústia pelas incertezas que perpassam o
texto. Após perder tantos filhos no mar, ha dúvidas sobre quantos outros
perderão agora, nesta nova viagem, a da integração, a que se dá em outro rumo,
oposto, mas também por mares nunca dantes navegados da Europa.
(Contribuição de Celso Felizola
Santos - Graduando de Letras na UFRRJ)
Referências
Bibliográficas:
Área
militar. Massacre de Badajoz.
Disponível em <http://www.areamilitar.net/histbcr.aspx?n=74>, acesso em:
19/nov. 2011;
FONTES,
Carlos. Memórias da emigração portuguesa
em França. Disponível em:
<http://imigrantes.no.sapo.pt/page6franca.html>, acesso em: 20 nov. 2011;
mãe,
valter hugo. a máquina de fazer espanhóis.
São Paulo: Cosac Naify, 2011;
PESSOA,
Fernando. Mensagem. São Paulo: Martin
Claret, 2001;
LOURES,
Carlos. Fernão Lopes: tempos difíceis
(crônica). Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt/fernao_lopes.htm, acesso
em: 19 nov 2011.