Somos
bons homens. assim começa a
máquina de fazer espanhóis,
de valter hugo mãe, considerado um dos atuais grandes nomes da
literatura portuguesa. vencedor do prêmio literário José Saramago,
arrancou enormes elogios do grande escritor português que considerou
seu livo o remorso
de baltazar serapião um
"tsunami literário" e a experiencia de lê-lo a "Assistir
um novo parto da língua portuguesa".
Pela
visão de Antônio Jorge da Silva, um homem idoso que é posto em um
asilo após a morte da esposa, somos levados a partilhar suas
reflexões e memória. Vemos sua dificuldade em lidar com a perda e a
negação em sentir-se bem com sua situação. Mais do que estar
velho e preso em um lugar de esquecimento lento e silencioso, o asilo
"lar da feliz idade", o Silva já não tem
fôlego para seguir em frente. Sem laura a vida perdeu o valor. De
forma bem reflexiva, e sem exageros, somos imersos na dor deste homem
e na injustiça de continuar vivo quando já não sobrou nada que o
prenda aqui:
“com
a morte, também o amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração
devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutria pela
pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de
nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a
perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é
compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita
a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não
se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem
não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos
levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões,
mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe
será permitida qualquer felicidade de agora em diante.” (mãe,
2011:21)
Mesmo
apesar da perda e da revolta o silva vai aos poucos se relacionando
com a pessoas que passam a fazer parte do seu cotidiano. Passa a
fazer amizade com os outros internos e juntos vão passando os dias a
debater e lembrar dos tempos idos e os reflexos nos dias atuais. Como
crianças se poem a brincar e fazerem travessuras, encontrando um
pouco de diversão mesmo em meio ao silencio e a iminência da morte.
E mesmo assim sem perderem o foco de sua situação. A melancolia e a
tristeza dividem espaço em medida igual com a alegria e a amizade.
O
Silva viu muita coisa. Viu um país em frangalhos e a violência dos
ditos homens bons. Sua alma, se é que existe alma, é testemunha e
vítima das lembranças que partilha com o leitor. A idade avança e
cobra os frutos de um passado que vive a remexer-se e desentocar as
coisas que se fingem esquecidas. O governo ditatorial do Estado Novo
Salazarista e a profunda marca deixada na memória daqueles homens e
mulheres que ali estão. É como se a vida do Silva fosse a vida de
Portugal, um país à deriva no salgado mar da História e que pouco
a pouco vai se abrindo ao leitor. Um país de silvas que viveram e
sobreviveram aos horrores políticos que tanto marcaram e
desfiguraram uma nação. Em seu titulo, a máquina de fazer
espanhóis, já carrega em si toda essa bagagem histórica, de
denuncia e arrependimento, pois Portugal já esteve sob governo
espanhol nos tempos de Felipe II e no livro surge a dúvida de como
estaria o país se ainda fosse governado pela Espanha. Portugal é
hoje economicamente bem inferior aos outros países europeus,
contrastando com a situação de seu vizinho, a Espanha: "é
verdade, quem de nós, ao menos uma vez na vida, não lamentou já o
fato de sermos independentes. quem, mais do que isso até, não
desejou que a espanha nos reconquistasse, desta vez para sempre e
para salários melhores"(mãe, 2011:184-185). Portugal é
então uma máquina de fazer espanhóis, as mulheres portuguesas
"abrem as pernas" e dão luz a homens e mulheres
"arrependidos , com vontade de voltar a casa, para terem
melhor casa, melhores salários, uma dignidade..." ao invés
de terem uma história de remorsos, tristezas e saudades.
Angústia.
É a palavra que define e termina este tão deliciosamente casmurro
livro. Onde mesmo na solidão não se está sozinho e mesmo no
esquecimento existem as lembranças boas e ruins. Onde a literatura
portuguesa ganha vida pela própria literatura portuguesa e o Esteves
sem metafísica, aquele do poema Tabacaria, de Fernando
Pessoa, é um interno do asilo e anda pelos mesmos corredores que o
Silva. Um pedaço da literatura se mostra vivo e tão humano quanto
todos ali, seja se agarrando a santas ocas, vendo pássaros negros e
máquinas estranhas de retirar a metafisica de um homem. E sentindo
angústia, muita angústia.