quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

a máquina de fazer espanhóis.



Somos bons homens. assim começa a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe, considerado um dos atuais grandes nomes da literatura portuguesa. vencedor do prêmio literário José Saramago, arrancou enormes elogios do grande escritor português que considerou seu livo o remorso de baltazar serapião um "tsunami literário" e a experiencia de lê-lo a "Assistir um novo parto da língua portuguesa".


Pela visão de Antônio Jorge da Silva, um homem idoso que é posto em um asilo após a morte da esposa, somos levados a partilhar suas reflexões e memória. Vemos sua dificuldade em lidar com a perda e a negação em sentir-se bem com sua situação. Mais do que estar velho e preso em um lugar de esquecimento lento e silencioso, o asilo "lar da feliz idade", o Silva já não tem fôlego para seguir em frente. Sem laura a vida perdeu o valor. De forma bem reflexiva, e sem exageros, somos imersos na dor deste homem e na injustiça de continuar vivo quando já não sobrou nada que o prenda aqui:


com a morte, também o amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutria pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.” (mãe, 2011:21)


Mesmo apesar da perda e da revolta o silva vai aos poucos se relacionando com a pessoas que passam a fazer parte do seu cotidiano. Passa a fazer amizade com os outros internos e juntos vão passando os dias a debater e lembrar dos tempos idos e os reflexos nos dias atuais. Como crianças se poem a brincar e fazerem travessuras, encontrando um pouco de diversão mesmo em meio ao silencio e a iminência da morte. E mesmo assim sem perderem o foco de sua situação. A melancolia e a tristeza dividem espaço em medida igual com a alegria e a amizade.


O Silva viu muita coisa. Viu um país em frangalhos e a violência dos ditos homens bons. Sua alma, se é que existe alma, é testemunha e vítima das lembranças que partilha com o leitor. A idade avança e cobra os frutos de um passado que vive a remexer-se e desentocar as coisas que se fingem esquecidas. O governo ditatorial do Estado Novo Salazarista e a profunda marca deixada na memória daqueles homens e mulheres que ali estão. É como se a vida do Silva fosse a vida de Portugal, um país à deriva no salgado mar da História e que pouco a pouco vai se abrindo ao leitor. Um país de silvas que viveram e sobreviveram aos horrores políticos que tanto marcaram e desfiguraram uma nação. Em seu titulo, a máquina de fazer espanhóis, já carrega em si toda essa bagagem histórica, de denuncia e arrependimento, pois Portugal já esteve sob governo espanhol nos tempos de Felipe II e no livro surge a dúvida de como estaria o país se ainda fosse governado pela Espanha. Portugal é hoje economicamente bem inferior aos outros países europeus, contrastando com a situação de seu vizinho, a Espanha: "é verdade, quem de nós, ao menos uma vez na vida, não lamentou já o fato de sermos independentes. quem, mais do que isso até, não desejou que a espanha nos reconquistasse, desta vez para sempre e para salários melhores"(mãe, 2011:184-185). Portugal é então uma máquina de fazer espanhóis, as mulheres portuguesas "abrem as pernas" e dão luz a homens e mulheres "arrependidos , com vontade de voltar a casa, para terem melhor casa, melhores salários, uma dignidade..." ao invés de terem uma história de remorsos, tristezas e saudades.


Angústia. É a palavra que define e termina este tão deliciosamente casmurro livro. Onde mesmo na solidão não se está sozinho e mesmo no esquecimento existem as lembranças boas e ruins. Onde a literatura portuguesa ganha vida pela própria literatura portuguesa e o Esteves sem metafísica, aquele do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, é um interno do asilo e anda pelos mesmos corredores que o Silva. Um pedaço da literatura se mostra vivo e tão humano quanto todos ali, seja se agarrando a santas ocas, vendo pássaros negros e máquinas estranhas de retirar a metafisica de um homem. E sentindo angústia, muita angústia.




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