quarta-feira, 17 de abril de 2013

a máquina de fazer espanhóis, valter hugo mãe

Valter Hugo Mãe

            Esta surpreendente obra, reconhecida em Portugal como o grande acontecimento literário português em 2010, é de autoria do escritor Valter Hugo Mãe, residente em Portugal desde sua infância.
            Um ponto de destaque é a escrita em minúscula (as maiúsculas aparecem apenas em dois capítulos); outra distinção é a ausência de pontuação, exceto a vírgula e o ponto.

Contextualizando

            “Com um estilo de prosa que José Saramago definiu como um “tsunami linguístico, semântico e sintático”, valter hugo mãe é o mais prestigiado autor de sua geração em Portugal. Em a máquina de fazer espanhóis, seu romance mais recente, valter hugo narra a história de antónio jorge da silva, um barbeiro de 84 anos que depois de perder a mulher, passa a viver num asilo. Sozinho, mas sem sucumbir ao pessimismo, silva se vê obrigado a investigar novas formas de conduzir sua vida. Ele, que viveu sob o peso da ditadura salazarista, faz também uma dura revisão de seu passado e de toda uma geração – não sem notar que o pessimismo sobre o papel de Portugal no mundo exacerbou-se. Considerado o acontecimento literário de 2010 em Portugal, a máquina de fazer espanhóis foi o segundo livro de ficção mais vendido naquele ano no país.” (retirado do site da editora Cosac Naify: http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/11598/a-m%C3%A1quina-de-fazer-espanh%C3%B3is.aspx)

A narrativa

            A narrativa é construída por meio do personagem-narrador, em primeira pessoa, António Jorge da Silva, sendo dividida em vinte e dois capítulos e se passa em volta deste personagem-narrador, já idoso e prestes a se tornar viúvo. Há uma mistura de episódios de sua vida antes e depois do lar. Um aspecto curioso é o fato de o personagem ser um velho octogenário, o que simboliza a voz que a sociedade não quer mais ouvir. A obra, resgata vozes como esta.

Personagens Principais


  • O senhor Cristiano Mendes da Silva, o Silva da Europa, que reencontra posteriormente no asilo;
  • Ellisa, filha do personagem-narrador, que o interna no asilo;
  • O Dr. Bernardo, que dirige o lar;
  • O senhor Américo, funcionário do lar, que “não é habilitado por escola nenhuma, senão pelo coração”;
  • O senhor Pereira, que antes de morrer descobre que é vítima de um câncer de próstata;
  • A dona Marta, cujo marido, mais jovem a abandonou no asilo e nunca mais deu notícias;
  • O Esteves sem metafísica, o do poema “tabacaria”;
  • Dona Leopoldina, que mantém em seu quarto o retrato de Teófilo Cubillas, jogador peruano que havia atuado em Portugal e com quem a solteirona havia vivido uma noite inesquecível de amor;
  • O Anísio Franco, o “anísio franco dos olhos de luz”, referência a um personagem real de Portugal;
  • O Enrique, o “português de badajoz”;
  • A dona Glória, que inicia um namoro não muito aceito pelo grupo com o Anísio.

Espaço e Tempo

            O espaço é centrado basicamente no asilo “lar da feliz idade”, nome que sugere um jogo de palavras e significados que o autor utiliza para tecer o romance.
           O tempo da narrativa é posterior à entrada de Portugal para a comunidade européia e o tempo narrado se alterna entre memórias do passado do senhor silva e o presente que vive no asilo.

Narrativa e Política

            A 
narrativa gira em torno da ditadura salazarista e sua relação com a educação, a religião, a família e o futebol. Através dessas instâncias o regime conseguia, manter um povo constituído de “bons homens” (mãe, 2011, p.33), dentro da ordem, ainda que vivendo na miséria.
            O autor analisa a fundo questões que passam pelo imaginário português, como sua posição em relação à Europa, as dificuldades de sobrevivência, o povo se dispersando, emigrando, sofrendo, morrendo, desde as navegações até a revolução de abril de 1974;  Analisa, ainda, o quadro que se configura com a integração de Portugal à comunidade européia; O medo, as angustias e incertezas,  como já escrevia dizer de Fernão Lopes (LOURES, 2011), quando  lançavam-se ao “mar salgado” (PESSOA, 2001). dúvidas, incertezas e angustia, como as que sente, no final, o próprio narrador.

“Tabacaria” e a narrativa

         “surpreendeu-me o senhor pereira que, como que se lembrando repentinamente, me perguntou, sabe quem é este esteves. torci os lábios com algum desinteresse e confirmação de ignorância. e ele disse, é o esteves sem metafísica, sim, o do fernando pessoa, é uma coisa do caraças. está a ver. e eu abri a boca de espanto inteiro. o que diz você, perguntei. ó homem, é verdade, é o esteves sem metafísica da tabacaria do fernando pessoa.” (mãe, 2011, p.50)
          “no dia quinze de janeiro de mil novecentos e vinte e oito joão esteves era um moço de vinte anos cuja vida corria difícil. [...] joão esteves entrou mais uma vez na tabacaria alves e comprou o jornal a ordens do tio, entrou na tabacaria de sorriso educado, cumprimentou o senhor fernando pessoa que ali estava de breve conversa com o dono do estabelecimento e depois cumprimentou o próprio dono do estabelecimento e pediu o jornal de sempre,  [...] e joão esteves saiu da tabacaria sem mais nada, inconsciente de que plantara no terreno fértil da criatividade de fernando pessoa um poema eterno.” (mãe, 2011, pp.69,70)
           “[...] houvessemos lembrado de que também no lar da feliz idade havia mitologia viva e pronta a abrir bocarras de espanto. o esteves. o elegante e eterno esteves sem metafísica que vivia ainda, falando e contando as suas aventuras como se os livros aumentassem. como se a tabacaria e o álvaro de campos e o fernando pessoa tivessem uma continuação.” (mãe, 2011, p.95)
            “era exatamente como ler a tabacaria parte dois, ou frequentar a tabacaria e estarmos oitenta anos antes a confraternizar com os génios numa das histórias mais históricas da nação.” (mãe, 2011, p.96)
            “e entretanto o mito esteves fazia cem anos.” (mãe, 2011, p.123)
            “o incrível aniversário do joão da silva esteves sem metafísica [...], era mesmo preciso que se lhe desse um abraço, àquele amigo do fernando pessoa, a um verso vivo da mais valiosa poesia portuguesa.” (mãe, 2011, p.125)
            “pasmávamos ainda como se não fosse coisa de acreditar que o joão esteves um dia tivesse vivido em lisboa e frequentado a tabacaria alves com naturalidade suficiente para ser genuíno dentro de um poema de fernando pessoa.” (mãe, 2011, p.127)
           “e o esteves sem metafísica, atiçado de hilário pelo senhor pereira, virou-se para a dona leopoldina e disse-lhe, come chocolates, manjarrona, come chocolates.” (mãe, 2011, p.75 - grifos nossos)
            “ficaria deitado dia e noite, a ver pela janela que o céu clareava e escurecia sobre a terra abrindo já as mandíbulas que me haveriam de tragar.” (mãe, 2011, p.24 - grifos nossos)
           Metafísica: “sabes que os peixes têm uma memória de segundos. [...] é por isso que não ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão fulgurante da percepção de estar vivo. compreendes. a cada três segundos experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais nada, apenas o assombro dessa constatação.”  (mãe, 2011, p.240)
           “naquela altura eu tinha de gritar. precisava de dizer que me arrependia, que não queria acabar sem metafísica, que me enterrassem com a metafísica e português.” (mãe, 2011, p.248)

Morte e a narrativa


            “com a morte, também o amor devia acabar. ato continuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. [...] com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se tornasse tão desumano [...] foi como se me dissesem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.” (mãe, 2011, p.21)‏
            “o século xx traz a morte que se esconde, a morte vergonhosa [...] não  há mais sinal de que uma morte ocorreu [...] a morte “boa” é aquela em que  não se sabe se o sujeito morreu ou não. o local da morte é transferido do lar para o hospital [...] no século xx a maioria das pessoas não vê os parentes morrerem. o hospital é conveniente pois   esconde a repugnância e os aspectos sórdidos ligados a doença.” (KOVÁCS, 2002, p.38,39)‏
            “entre aquelas pessoas poucas me haviam já dirigido a palavra. não sabia nada sobre elas, não imaginava quais fossem os seus nomes [...] claro está que quando alguma morria, eu não tinha percepção de que subitamente alguém ali faltava, alguém que pudesse estar já a ser substituído por outra pessoa.” (mãe, 2011, p.210)‏
            “os quartos da ala esquerda deitam sobre o cemitério. o médico olhava para o chão e fazia ar de quem não via nisso mal algum.”(mãe, 2011, p.24)‏
            A morte como negócio: “é um crime. põem estes fumos nos quartos dos velhos. põem sim, que quando eu cheguei aqui já alguém me contara que o faziam. devem ter quem dê mais para entrar. tem de despachar estes velhos. tome tento no que lhe digo, eles têm de despachar estes velhos para meterem aqui outros com maior pagamento.”  (mãe, 2011, p.55)‏
           Os pássaros negros: “durante os meus pesadelos imaginava-me num dos quartos da ala esquerda a babar sobre os lençóis e a ver dezenas de abutres voarem no céu diante da janela [...] subitamente debicavam me o corpo e eu ia permanecendo vivo e, até não ter corpo nenhum, a consciência não me abandonava. eu agoniava por achar que a morte não dependia do corpo, condenando-me a padecer daquela esera para todo o sempre. o estupor do corpo já desfeito e a morte sem o perceber, sem fazer o que lhe competia por uma crueldade perversa que eu nunca previra.” (mãe, 2011, p.37)‏

 Referências Bibliográficas:


Área militar. Massacre de Badajoz. Disponível em <http://www.areamilitar.net/histbcr.aspx?n=74>, acesso em: 19/nov. 2011;
FONTES, Carlos. Memórias da emigração portuguesa em frança. Disponível em: <http://imigrantes.no.sapo.pt/page6franca.html>, acesso em: 20 nov. 2011;
KOVÁCS, Maria Júlia. Atitudes diante da morte: visão histórica, social e cultural. In: Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002;
mãe, valter hugo. a máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011;
PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV. Porto Alegre, RS: L&PM POCKET, 2011.
 _________. Mensagem. São Paulo: Martin Claret, 2001;
LOURES, Carlos. Fernão Lopes: tempos difíceis (crônica). Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt/fernao_lopes.htm, acesso em: 19 nov 2011.

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