![]() |
| Valter Hugo Mãe |
Esta
surpreendente obra, reconhecida em Portugal como o grande acontecimento
literário português em 2010, é de autoria do escritor Valter Hugo Mãe,
residente em Portugal desde sua infância.
Um ponto
de destaque é a escrita em minúscula (as maiúsculas aparecem apenas em dois
capítulos); outra distinção é a ausência de pontuação, exceto a vírgula e o ponto.
Contextualizando
“Com um estilo de prosa que
José Saramago definiu como um “tsunami linguístico, semântico e sintático”,
valter hugo mãe é o mais prestigiado autor de sua geração em Portugal. Em a
máquina de fazer espanhóis, seu romance mais recente, valter hugo narra a
história de antónio jorge da silva, um barbeiro de 84 anos que depois de perder
a mulher, passa a viver num asilo. Sozinho, mas sem sucumbir ao pessimismo,
silva se vê obrigado a investigar novas formas de conduzir sua vida. Ele, que
viveu sob o peso da ditadura salazarista, faz também uma dura revisão de seu
passado e de toda uma geração – não sem notar que o pessimismo sobre o papel de
Portugal no mundo exacerbou-se. Considerado o acontecimento literário de 2010
em Portugal, a máquina de fazer espanhóis foi o segundo livro
de ficção mais vendido naquele ano no país.” (retirado
do site da editora Cosac Naify: http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/11598/a-m%C3%A1quina-de-fazer-espanh%C3%B3is.aspx)
A narrativa
A narrativa é construída por meio do personagem-narrador, em primeira pessoa, António Jorge da Silva, sendo dividida em vinte e dois capítulos e se passa em volta deste personagem-narrador, já idoso e prestes a se tornar viúvo. Há uma mistura de episódios de sua vida antes e depois do lar. Um aspecto curioso é o fato de o personagem ser um velho octogenário, o que simboliza a voz que a sociedade não quer mais ouvir. A obra, resgata vozes como esta.
Personagens Principais
- O senhor Cristiano Mendes da Silva, o Silva da Europa, que reencontra posteriormente no asilo;
- Ellisa, filha do personagem-narrador, que o interna no asilo;
- O Dr. Bernardo, que dirige o lar;
- O senhor Américo, funcionário do lar, que “não é habilitado por escola nenhuma, senão pelo coração”;
- O senhor Pereira, que antes de morrer descobre que é vítima de um câncer de próstata;
- A dona Marta, cujo marido, mais jovem a abandonou no asilo e nunca mais deu notícias;
- O Esteves sem metafísica, o do poema “tabacaria”;
- Dona Leopoldina, que mantém em seu quarto o retrato de Teófilo Cubillas, jogador peruano que havia atuado em Portugal e com quem a solteirona havia vivido uma noite inesquecível de amor;
- O Anísio Franco, o “anísio franco dos olhos de luz”, referência a um personagem real de Portugal;
- O Enrique, o “português de badajoz”;
- A dona Glória, que inicia um namoro não muito aceito pelo grupo com o Anísio.
Espaço e Tempo
O espaço é centrado basicamente no asilo “lar da feliz idade”, nome que sugere um jogo de palavras e significados que o autor utiliza para tecer o romance.
O tempo da
narrativa é posterior à entrada de Portugal para a comunidade européia e o
tempo narrado se alterna entre memórias do passado do senhor silva e o presente
que vive no asilo.
Narrativa e Política
A narrativa gira em torno da ditadura salazarista e sua relação com a educação, a religião, a família e o futebol. Através dessas instâncias o regime conseguia, manter um povo constituído de “bons homens” (mãe, 2011, p.33), dentro da ordem, ainda que vivendo na miséria.
O autor
analisa a fundo questões que passam pelo imaginário português, como sua posição
em relação à Europa, as dificuldades de sobrevivência, o povo se dispersando,
emigrando, sofrendo, morrendo, desde as navegações até a revolução de abril de
1974; Analisa, ainda,
o quadro que se configura com a integração de Portugal à comunidade européia; O
medo, as angustias e incertezas, como já
escrevia dizer de Fernão Lopes (LOURES, 2011), quando lançavam-se ao “mar salgado” (PESSOA, 2001).
dúvidas, incertezas e angustia, como as que sente, no final, o próprio
narrador.
“Tabacaria” e a narrativa
“surpreendeu-me
o senhor pereira que, como que se lembrando repentinamente, me perguntou, sabe
quem é este esteves. torci os lábios com algum desinteresse e confirmação de
ignorância. e ele disse, é o esteves sem metafísica, sim, o do fernando pessoa,
é uma coisa do caraças. está a ver. e eu abri a boca de espanto inteiro. o que
diz você, perguntei. ó homem, é verdade, é o esteves sem metafísica da
tabacaria do fernando pessoa.” (mãe, 2011, p.50)
“no dia
quinze de janeiro de mil novecentos e vinte e oito joão esteves era um moço de
vinte anos cuja vida corria difícil. [...] joão esteves entrou mais uma vez na
tabacaria alves e comprou o jornal a ordens do tio, entrou na tabacaria de
sorriso educado, cumprimentou o senhor fernando pessoa que ali estava de breve
conversa com o dono do estabelecimento e depois cumprimentou o próprio dono do
estabelecimento e pediu o jornal de sempre,
[...] e joão esteves saiu da tabacaria sem mais nada, inconsciente de
que plantara no terreno fértil da criatividade de fernando pessoa um poema
eterno.” (mãe, 2011, pp.69,70)
“[...]
houvessemos lembrado de que também no lar da feliz idade havia mitologia viva e
pronta a abrir bocarras de espanto. o esteves. o elegante e eterno esteves sem
metafísica que vivia ainda, falando e contando as suas aventuras como se os
livros aumentassem. como se a tabacaria e o álvaro de campos e o fernando
pessoa tivessem uma continuação.” (mãe, 2011, p.95)
“era exatamente
como ler a tabacaria parte dois, ou frequentar a tabacaria e estarmos oitenta
anos antes a confraternizar com os génios numa das histórias mais históricas da
nação.” (mãe, 2011, p.96)
“e
entretanto o mito esteves fazia cem anos.” (mãe, 2011, p.123)
“o
incrível aniversário do joão da silva esteves sem metafísica [...], era mesmo
preciso que se lhe desse um abraço, àquele amigo do fernando pessoa, a um verso
vivo da mais valiosa poesia portuguesa.” (mãe, 2011, p.125)
“pasmávamos
ainda como se não fosse coisa de acreditar que o joão esteves um dia tivesse
vivido em lisboa e frequentado a tabacaria alves com naturalidade suficiente
para ser genuíno dentro de um poema de fernando pessoa.” (mãe, 2011, p.127)
“e o
esteves sem metafísica, atiçado de hilário pelo senhor pereira, virou-se para a
dona leopoldina e disse-lhe, come chocolates, manjarrona, come chocolates.”
(mãe, 2011, p.75 - grifos nossos)
“ficaria
deitado dia e noite, a ver pela janela que o céu clareava e escurecia sobre a
terra abrindo já as mandíbulas que me haveriam de tragar.” (mãe, 2011, p.24 -
grifos nossos)
Metafísica:
“sabes que os peixes têm uma memória de segundos. [...] é por isso que não
ficam loucos dentro daqueles aquários sem espaço, porque a cada três segundos
estão como num lugar que nunca viram e podem explorar. devíamos ser assim, a
cada três segundos ficávamos impressionados com a mais pequena manifestação de
vida, porque a mais ridícula coisa na primeira imagem seria uma explosão
fulgurante da percepção de estar vivo. compreendes. a cada três segundos
experimentávamos a poderosa sensação de vivermos, sem importância para mais
nada, apenas o assombro dessa constatação.” (mãe, 2011, p.240)
“naquela
altura eu tinha de gritar. precisava de dizer que me arrependia, que não queria
acabar sem metafísica, que me enterrassem com a metafísica e português.” (mãe,
2011, p.248)
Morte e a narrativa
“com a
morte, também o amor devia acabar. ato continuo, o nosso coração devia
esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou
de existir. [...] com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser
erradicado, para que aos vivos o fardo não se tornasse tão desumano [...] foi
como se me dissesem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos
levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos
de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer
felicidade de agora em diante.” (mãe, 2011, p.21)
“o século
xx traz a morte que se esconde, a morte vergonhosa [...] não há mais sinal de que uma morte ocorreu [...]
a morte “boa” é aquela em que não se
sabe se o sujeito morreu ou não. o local da morte é transferido do lar para o
hospital [...] no século xx a maioria das pessoas não vê os parentes morrerem.
o hospital é conveniente pois esconde a
repugnância e os aspectos sórdidos ligados a doença.” (KOVÁCS, 2002, p.38,39)
“entre
aquelas pessoas poucas me haviam já dirigido a palavra. não sabia nada sobre
elas, não imaginava quais fossem os seus nomes [...] claro está que quando
alguma morria, eu não tinha percepção de que subitamente alguém ali faltava,
alguém que pudesse estar já a ser substituído por outra pessoa.” (mãe, 2011,
p.210)
“os
quartos da ala esquerda deitam sobre o cemitério. o médico olhava para o chão e
fazia ar de quem não via nisso mal algum.”(mãe, 2011, p.24)
A morte
como negócio: “é um crime. põem estes fumos nos quartos dos velhos. põem sim,
que quando eu cheguei aqui já alguém me contara que o faziam. devem ter quem dê
mais para entrar. tem de despachar estes velhos. tome tento no que lhe digo,
eles têm de despachar estes velhos para meterem aqui outros com maior
pagamento.” (mãe, 2011, p.55)
Os
pássaros negros: “durante os meus pesadelos imaginava-me num dos quartos da ala
esquerda a babar sobre os lençóis e a ver dezenas de abutres voarem no céu
diante da janela [...] subitamente debicavam me o corpo e eu ia permanecendo
vivo e, até não ter corpo nenhum, a consciência não me abandonava. eu agoniava
por achar que a morte não dependia do corpo, condenando-me a padecer daquela
esera para todo o sempre. o estupor do corpo já desfeito e a morte sem o
perceber, sem fazer o que lhe competia por uma crueldade perversa que eu nunca
previra.” (mãe, 2011, p.37)
Referências Bibliográficas:
Área militar. Massacre de Badajoz. Disponível em <http://www.areamilitar.net/histbcr.aspx?n=74>, acesso em: 19/nov. 2011;
FONTES, Carlos. Memórias
da emigração portuguesa em frança. Disponível
em: <http://imigrantes.no.sapo.pt/page6franca.html>,
acesso em: 20 nov. 2011;
KOVÁCS, Maria Júlia. Atitudes
diante da morte: visão histórica, social e cultural. In: Morte e
desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002;
mãe, valter hugo. a
máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011;
PESSOA, Fernando. Poemas
de Álvaro de Campos: obra poética IV. Porto Alegre, RS: L&PM POCKET,
2011.
_________. Mensagem. São Paulo: Martin Claret, 2001;
LOURES, Carlos. Fernão
Lopes: tempos difíceis (crônica).
Disponível em: http://www.vidaslusofonas.pt/fernao_lopes.htm, acesso em: 19 nov 2011.


Nenhum comentário:
Postar um comentário